Além da escrita…

Não surpreende que Fernando Sabino, caminhando pela Gávea, retardasse o momento de escrever. A busca pelo pitoresco, como ele descreve em “A Última Crônica”, de certo modo pesa sobre as costas do autor. No entanto, o inusitado — aquilo digno de um texto —, não se revela aos olhos de escritor; antes, despe-se aos olhos de menino. Explico-me: é preciso uma alma pueril e terna para sentir ao toque da pele as manifestações sutis do cotidiano. Um homem que fuma na porta de um prédio, a mulher com saia de chita e o seu poodle, as crianças que correm às gargalhadas — em tudo existe algo de miraculoso, esperando o devoto que lhe enxergará o aspecto divino. Nesse sentido, o papel branco é o leito que nos convida, o escritor e o episódico, à comunhão conjugal.

Sob as árvores que perfilam no Parque da Cidade, eu estaciono o carro. Por algum motivo, o vento fino que sussurra, as folhas secas que reviram-se no chão, os galhos que ondulam nas copas, trazem-me algo de “A Última Crônica”. Logo, a sensação dissipa-se, levada pela brisa; vejo Fernando Sabino indo embora, quem sabe retardando mais uma vez o ímpeto de escrever — que acredito imortal. Pela janela do carro, miro uma equipe de trabalhadores montado uma grande estrutura de alumínio, que se assemelha a uma catedral. Etéreas, linhas imaginárias formulam-se dentro de mim; entreteço, com o vago do sentimento, uma moldura que abraça a imagem de Marcel Proust. “Tudo nesse Parque tem a delicadeza de uma página de Proust; talvez ele esteja em sua cama, escrevendo-me neste instante; sinto-me um personagem seu.” 

Ao iniciar a leitura de No Caminho de Swann, eu dei uma corporatura real aos personagens, especialmente ao sr. Charles Swann. Um colega de trabalho, com o qual pouco converso, tornou-se, para mim, a sua figura. Sempre que leio a obra, tenho um referencial encarnado desse personagem. Fiz isso também com Rodion Românovitch Raskólnikov, de Dostoiévski: ele tomou, em mim, a imagem de um amigo arquiteto. De sorte que, no meu ambiente de trabalho, vez ou outra, vejo cruzarem o corredor Charles Swann e Raskólnikov. Os meus colegas perdem a identidade real, porquanto na posse dos personagens literários. O mundo real, desse modo, é uma constante nota de rodapé dos livros lidos. É o meio que encontro de penetrar, verdadeiramente, nas obras universais. 

Às vezes, me condeno pelo estratagema clandestino. Ora, capturar a imagem de alguém para fazer-lhe o títere sob cuja pele preencherei de vida os meus heróis é escuso e talvez infamante — a depender do personagem. Abstenho-me, sobretudo, de fazê-lo com parentes ou conhecidos próximos: receio deslustrar pessoas, maculando laços de afeto e consideração que ergueram-se dentro de mim ao longo do tempo. Quem poderia modelar, por exemplo, o desejo febril e desenfreado de uma Emma Bovary ou o egoísmo e ambição de um Julian Sorel? Posto isso, devo dizer: conspurco apenas a figura dos que me são distantes, daqueles que somente o espectro se afixou na minha retina. Existem casos notáveis, em que o talhe carnal serve tão bem ao protagonista que este se torna uma força viva em meu espírito. Enxergo-lhe a epiderme, marcas de expressão, cacoetes — qual Gepeto ao conceber Pinóquio.

O horário de almoço, na companhia de um livro físico ou do Kindle, evoca tantas considerações que eu sobejo, transbordo; apresso-me a reter algumas gotas, registradas em notas físicas e interiores. Há pouco tempo, descobri no Parque da Cidade um mostruário esplêndido dos tipos humanos: quantas pessoas passam por aqui, desfilando o seu leque de infinitas possibilidades? Uma senhora, por exemplo, trajando as vestes alaranjadas do Serviço de Limpeza Urbana, a varrer as folhas secas ao lado do meu veículo — quantas histórias, lágrimas e risos escondem-se por detrás da sua compleição? Em outra ocasião, vi alguns indígenas, com seus corpos pintados pelo jenipapo e o urucum, atravessando o Parque, em direção ao Eixo Monumental: organizavam-se em protesto.

Certo dia, demorei-me a observar um quiosque de massagem no estacionamento 13 do Parque; um jovem, deitado numa maca, recebia das mãos do massoterapeuta o alívio para o corpo retesado. Desejei sentir também aquele deleite, que abrandava no rapaz o desassossego dos dias; fazê-lo, todavia, me obrigaria a abandonar o livro que tinha em mãos; preferi o livro, que as tensões da alma não podem abrir-se às investidas do corpo, mas tão somente aos abismos em si mesma — e o livro é um precipício. No entanto, contemplar é uma forma de possuir, e ao observar a cena, apoderei-me dela; daí por que desfrutei o momento duplamente: entre as páginas da obra e a massagem do jovem, fui massageado no corpo e na alma.

No fundo, venho ao Parque da Cidade como Fernando Sabino ia a um botequim da Gávea: procuro por algo, que talvez não se revele totalmente no sorriso de um pai de família, tampouco nas árvores que desabrocham em flor o seu gozo. Busco, na realidade, algo que está por detrás de tudo isso e que encontra nessas variantes a capa tênue com que se reveste: procuro um sentido, um significado. Assim eu quereria esse texto: que fosse belo como a “A Última Crônica”, de Sabino. Mas não posso enganá-lo, leitor. O belo não é um fim em si mesmo, assim como este texto também não o é. Ao contrário, ele é uma porta que se abre — além dela, uma presença fulgurante, essência pura e universal. 

Atravesse-mo-lá.

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